Portulano

Nas primeiras páginas do Volume I de Xogum - best seller de James Clavell -, John Blackthorne, piloto inglês e capitão do Erasmus, uma belonave holandesa de vinte canhões, reflete se conseguirá chegar ao Japão (lugar desconhecido e que todos duvidam da existência). O ano é 1600 d.C e o Novo Mundo está dividido entre Portugal e Espanha, os maiores navegadores já conhecidos. Mais da metade da tripulação padeceu, e os que ainda vivem, definham miseravelmente pelo escorbuto. Blackthorne, ainda que muito debilitado fisicamente, demonstra sua força emocional e determinação racional antes que o leitor chegue à página dez. Num de seus devaneios, enquanto uma interminável tempestade açoita impiedosamente o Erasmus, Blackthorne relembra das palavras de um antigo professor de navegação:
 
"Se não tem terra à vista, mocinho, você está sempre perdido. A menos que tenha um portulano".
 
Portulano é uma espécie antiga de carta náutica. Na verdade, era mais um livrinho com informações detalhadas e transmitidas por um piloto que já estivera lá antes. Não havia registro de latitudes e longitudes, apenas linhas loxodrómicas traçadas a partir da Rosa dos Ventos. No entanto, era algo tão valioso que portugueses e espanhóis, "donos" das águas do resto do mundo, consideravam todos os seus portulanos secretos, e estes, guardados como tesouros nacionais, eram procurados desesperadamente por navegadores de outras nacionalidades.
 
A madrugada já ia alta ontem quando fechei o livro. Parei no momento em que o Capitão Blackthorne está em sua cabina, sozinho. Lá, ele destranca o baú e consulta o portulano secreto, escrito por outro navegador que já traçara aquele caminho. Só resta a ele rezar para que Erasmus esteja no rumo certo e o Japão surja antes que todos morram a bordo. Antes de pegar no sono, grifei a palavra portulano no caderno de notas que anda comigo. Fiquei pensando na importância de se preparar para o que precisa ser enfrentado, como faziam os homens de outros tempos ao singrar mares desconhecidos. É preciso muita ousadia, claro, para se atirar no desconhecido com a cara e com a coragem! A maioria dos grandes feitos humanos surgiu assim, do impulso apaixonado. Contudo, se podemos nos embasar antes, por que não? Ter um portulano, mesmo que seja abstrato, algo que somente exista no nosso interior, me pareceu uma ideia interessante. Não falo somente de ter metas e objetivos de vida anotados e bem traçados. Acho que um portulano deve conter a coleta diária de vivências, algo que nos guie quando não há terra à vista e nada  e nem ninguém surge com a bóia de salvação... Muitas vezes, atravessamos situações na vida (doenças longas ou graves, rompimentos emocionais, vícios, depressão, crise financeira, infortúnios de todo tipo...) como náufragos, nos debatemos/nadamos contra a corrente, correndo o risco de não sobrevivermos ao peso do golpe sofrido. Um "navegador que já estivera lá antes" pode ser de imensa ajuda. Desabafar com um amigo, frequentar um grupo de ajuda, abastecer-se de informações sobre o que nos aflige nada mais é que ter um portulano valioso à disposição. É não estar sozinho, perdido, acabado. Saber disso, como escreveu James Clavell, talvez seja uma das coisas que mantêm a gente vivo, enquanto outros morrem.
 
"Enfrentei o mar a vida toda e sempre venci. Vencerei sempre." - John Blackthorne.

CH
 
 

 

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