Abandono

Acho essa palavra triste. Abandonar sempre me pareceu um ato cruel e desalmado. A palavra por si só soa de um jeito torto, sugerindo um largar de mão bem no meio do caminho, um pegar desagradavelmente de surpresa  a quem não tem a menor ideia da joça que está para acontecer. Por alguma razão, tenho dificuldade em abandonar o que quer que seja. Vivo e sofro só em pensar. A vida, no entanto, mostra abandonos por todos os lados, quase que full time. Há obras abandonadas, casas abandonadas, crianças abandonadas, velhos abandonados... Há cidades abandonadas, amores, jardins e destinos abandonados. Todas as vezes em que esbarro com o abandono, penso que alguém falhou gravemente em não voltar para buscar o que lhe pertencia... Nunca estive na condição de abandonada, o que é um caso claro de sorte em vista de toda a miséria humana vigente. O máximo desse pavor que experimentei foi quando meus pais se atrasaram (muito!) para me buscar depois da aula; tive a nítida sensação de que eles haviam simplesmente decidido seguir a vida sem mim, uma sensação de vazio que me gritava que eu estava prestes a ter o mundo virado de ponta cabeça. Depois de duas horas, fui resgatada por uma mãe culpada (a minha mesma) dizendo que um alagamento no túnel Rebouças tinha causado o atraso absurdo. Ela me perguntou se pensei que ninguém apareceria para me buscar, mas eu, muito fula da vida pelo susto, menti dizendo que obviamente aquilo nem passara pela minha cabeça. Devo ter chorado litros por dentro, e acho que vem daí o meu trauma...
 
Pensei em abandono por causa de uma mísera conversa com um amigo, papo pra lagartixa mudar de parede sobre como fomentar o hábito da leitura no nosso país. Acho que já conversei sobre tal tópico um zilhão de vezes, já falei a respeito até em palestra quando perguntada por um leitor. Queria mesmo era ter uma varinha mágica para mudar o quadro, colocar livros em todas as escolas e lares desse Brasil varonil e nas mãos de cada criança, porém não estou com essa bola toda. Vira-e-mexe, pesquiso sobre iniciativas bacanas de muita gente que ama os livros tanto quanto eu. Foi aí que meu amigo falou sobre o Esqueça Um Livro. Bastou a frase acabar pro meu literato coração falhar uma batida e quase me levar desta pra uma outra! Como assim es-que-cer um livro, Feioso?, falei num desespero bem parecido com o daquela menina esquecida na escola. Oras... Esquecer de esquecer mesmo! Deixar pra trás! Abandonar para que ele seja encontrado! - foi a resposta que ouvi, já sofrendo e pensando na minha biblioteca, nos meus amores encadernados, todos os trilhares de páginas que já folheei chorando ou às gargalhadas, apaixonada ou furiosa por tantos personagens que conheço como a palma da minha mão. Não consigo..., devolvi de pronto, pois é óbvio que não vou abandonar livros por aí, deixando-os relegados à propria sorte e correndo o risco de ir morar com alguém que não vai ama-los tão profundamente como euzinha! Que ideia errada! - foi o que pensei de primeira. Depois, menos histérica e mais budista, pensei que eu poderia sim praticar o desapego literário. Bastava que eu enxergasse como um amigo oculto à vera, pra valer. Provavelmente, na minha primeira vez, vou suar em bicas, terei lágrimas nos olhos e precisarei da presença forte de um amigo muito mais evoluído espiritualmente para arrancar o livro das minhas mãos e me tirar de cena arrastada e aos berros. Mas, estou tentada a entrar nessa dança e ver o que acontece!
 
Só peço para quem encontrar um livro por aí, qualquer um, entenda que ele não foi abandonado. Ele é, na verdade, um presente inestimável. Cuide bem dele.
 
 
"Um leitor vive mil vidas antes de morrer, o homem que nunca lê vive apenas uma.”

CH

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