Entre Aspas

Conversando a gente se entende, já diz a sabedoria passada entre gerações. Sabemos os signos da linguagem, dominamos o beabá da comunicação e estamos conectados com o mundo inteiro a partir de um clique. Mas, será que tudo o que dizemos tem que estar invariavelmente entre aspas? Já repararam como tal recurso gramatical anda de braços dados com o nosso atual desejo por entendimento e cumplicidade alheios? Falamos que conhecemos fulano muito bem - num piscar de olhos, alguma parte da frase ganha aspas curvas e o sentido muda completamente. "Conhecemos" o fulano muito bem; conhecemos o "fulano" muito bem; ou conhecemos o fulano "muito bem". O receptor da mensagem que decifre o que o destaque quer dizer dentro do todo, pois está aberto o caminho fértil para o que não-foi-dito, a morada eterna de equívocos fenomenais.
Infelizmente, o hábito de aspar ultrapassou o limite da comunicação verbal e passou a ocupar um posto dentro da nossa maneira de tratar/entender os nossos afetos, seja para depreciar ou ironizar. Outro dia, conversando com uma amiga, fiquei sabendo que ela havia sido traída, portanto, com razão, espumava como um cão raivoso. Ela me contava rangendo os dentes que o "namorado" havia "saído" com uma "periguete", enquanto eu, mentalmente, enchia de barras as palavras numa tentativa de destrinchar o que ela queria dizer com aquela informação contida em tamanho uso indiscriminado dos sinais gráficos.
"Namorado"?, perguntei e ela me disse: Bem, nós não somos oficialmente namorados... Estamos nos conhecendo ainda e nem falamos qualquer coisa sobre namoro. Ponto 1 esclarecido.
"Saído", na frase da minha amiga, queria dizer que ela apenas suspeitava de algo, já que por dois dias ele ficara sem dar notícias. Ponto 2 esclarecido.
E a tal "periguete", na verdade, era uma mulher que trabalha no mesmo departamento e que teve um affair com o fulano em priscas eras! Ponto 3 esclarecido. Ou seja, nada na frase inicial era real. Ela utilizou tais artifícios para se expressar porque  me queria como aliada na indignação, no agastamento e na fixação da pena para o (falso) infrator emocional. A minha neutralidade não a interessava. Prática rara? Quem dera... Basta participar de qualquer conversa e ficará constatado o infeliz communis.
Não converse entre aspas, não sinta entre aspas, não ame entre aspas, não viva entre aspas.
Deixe-as para os poetas.

CH


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