Encantamento

De uma hora para outra, sem qualquer alarde, você sente o diferente. Não é preciso nenhum ato heróico, nenhum gesto de bravura ou de extravagância. Provavelmente, será algo feito num momento ínfimo, distraído, bem bobo - um  jeito de mexer no cabelo, ou de franzir as sobrancelhas talvez, ou até uma maneira de passar o indicador nos cílios podem servir de ponto de partida para um encantamento. Dá uma vontade danada de perguntar: Você esteve esse tempo todo aqui? Como eu não reparei antes?  O encantamento pode parecer simples à beça, mas se tentarmos explicá-lo, logo percebe-se que não será uma tarefa das mais fáceis. Não falo do significado etimológico  do vocábulo nem daquela definição destrinchada por dicionários; me refiro ao encantamento enquanto trampolim para a fascinação... Como explicar que a sua grande história de amor começou quando ele se abaixou para amarrar os cadarços do surrado All Star de cano alto? Ali,  você percebeu que ninguém mais nesse lindo planetinha azul amarraria os cadarços de um jeito tão... tão... especial, e pronto, você se flagra em estado de encantamento! Ou quando ela perdeu uma das lentes de contato no cinema, assistiu ao filme inteiro apenas com o olho direito aberto e, indiferente ao ridículo da cena, você saiu da sala de projeção atordoado e sorrindo, apesar do filme ser um drama dos mais cabulosos? Isso é o encantamento agindo no seu córtex prefrontal, afofando o terreno para quando você cair de amores com os quatro pneus arriados.
Num tempo onde as abundâncias físicas andam tão expostas e supravalorizadas, fica meio ridículo de dizer que se encantou por um cara por causa de uma imitação irrepreensível do Dr. Spock, ou pela voz suave e cadenciada de uma mulher que grava audiobooks para cegos. Mas, acredito que o encantamento escolha maneiras inusitadas para surgir, e que passam bem longe da atração física, de um beijo sensacional ou da química de pele. Feioso, um amigaço meu, já ficou enfeitiçado por uma panturrilha num supermercado! A dona do músculo se esticou toda para pegar o produto na prateleira do alto sem saber que deixava alguém encantado naquele instante. Ele conheceu a mulher depois, mas o começo se deu pelo encanto causado pela batata da perna em posição de contração. Poderíamos classificar como fetiche se acontecesse com frequência, o que não foi o caso. Na verdade, aconteceu uma única vez. En-can-ta-men-to, é a explicação. Eu mesma já me vi encantada por um pretendente-a-algo que dobrava as mangas da camisa social como ninguém mais. Se virou paixão? Basta ler outras crônicas por aqui pra saber... ;)
Sou da opinião que encantamento é a antessala da paixão. É onde tudo começa e ainda pode ser razoavelmente controlável, por isso se difere com propriedade da paixão, que é avassaladora, fervente, não há escapatória. Paixão é assaltante de sentidos e necessidades, leva o sono, a fome, o sossego, o juízo, o bom senso. Já o encantamento, não. De bobeira, ele coloca devagarinho aquela pessoa no seu pensamento (como é possível, se até outro dia ela não estava ali?); você pode estar lavando o carro, passeando com o cachorro ou destampando a esferográfica (compreenda a singeleza dos exemplos), e num piscar de olhos se pega pensando naquela pessoa bacana e com quem você jamais atravessou a faixa amarela de segurança. Isso, caros amigos, é puro encantamento em ação! Pode ser  frustrante ou sensacional, dependendo do seu estado civil e da sua disposição para viver o que se desenrolar disso. Albert Eisntein já disse que "a lei da gravidade não pode ser responsabilizada pelo fato de uma pessoa cair de amores por outra". Mas, o encantamento sim, se você permitir... Quer apostar?



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