Segunda Garrafa de Vinho

Ele disse que esteve esperando por mim. Não segurei a vontade de perguntar onde. Onde ele teria ficado esperando por mim? Numa esquina de uma enorme cidade barulhenta, movimentada e insana? Dentro de casa, sentado no sofá, os olhos pregados numa programação televisiva desinteressante, enquanto eu andava me equilibrando pelos meiofios de concreto? Ou esteve no topo do prédio mais alto já construído, olhando o mundo na poltrona favorita do Arquiteto da Vida? Ele diz que, pra ser bem sincero, esteve por aí, vivendo, respirando, sonhando, como qualquer um. Sonhando com o que?, indago dando continuidade a uma conversa que começou nem sei bem de qual maneira. Sonhando em como as coisas seriam quando o tempo passasse, ele respondeu. E o tempo passou tão rápido e, ao mesmo tempo, devagar demais quando, na verdade, ele revela que tinha urgência em saber onde eu estava escondida. Digo a ele que nunca me escondi de nada, mas ele me lança um olhar de lado como quem não bota muita fé no que está ouvindo. Eu sorrio para ganhar uns segundos de lambuja, e é a vez de ele abrir um sorriso que me diz que o truque não passou batido. Não sou muito boa em disfarces, confesso, e então ele me conta que já viu muita dissimulação enquanto esteve  por aí vivendo, respirando e sonhando, como qualquer um. Não preciso mais disso na minha vida, conclui e eu vejo um lampejo triste em seus olhos. Eu tenho vontade de passar as costas da mão na ossatura forte do maxilar inferior dele, mas me contenho. Não posso ser impulsiva ou irresponsável neste instante. Ele hesita em  perguntar porque eu não fiz o que queria, eu baixo os olhos para a mesa quadrada do bar em que estamos e fico brincando com o celular que guarda mensagens de um amor perdido. Quando torno a olhar pra ele, o momento passou. Generoso, ele finge que esqueceu o assunto e pergunta se devemos pedir a segunda garrafa de vinho. Digo que sim, e ele aproveita para rir e dizer que sabia exatamente que essa seria a minha resposta. Eu me desinteresso do celular, fisgada agora pelo jogo adivinhatório. Pergunto se ele lê pensamentos ou tem bola de cristal, joga búzios ou tarô. Ele faz firula, o sorriso bonito mostrando uma fileira alva de dentes simétricos.

- Você é o tipo exato de mulher para uma segunda garrafa de vinho. É uma tese interessante, eu digo, e me animo em perguntar que tipo seria esse. Suspense. O garçom ignora a conversa e se aproxima de nós com simpatia. Ele pede mais do mesmo vinho e agradece. Eu sorrio por dentro ao vê-lo no desenrolar daquela curta cena. Penso em dizer algo, mas ele retoma o fio da meada como se a própria Ariadne o estivesse guardando pra ele, e voltamos a atenção para o curioso teorema. Só se toma uma segunda garrafa de vinho com uma mulher quando desejamos que a noite não termine, ele explica, e acho que o bar inteiro pode notar que agora estou completamente sem graça. A segunda garrafa é trazida e aberta sob os nossos olhos atentos. Respiro fundo e, pelo campo visual, percebo que ele parece se divertir com o meu acanhamento. A minha taça ganha primeiro o líquido brilhante e de vermelho rubi intenso. Espero-o para brindar. Ficamos sozinhos no bar lotado, e ele pergunta a que beberemos. Eu digo que à vida, embora pense em brindar também por aquela noite, por aquele momento. Ele me olha e fala que tem que me dizer algo antes que a segunda garrafa se acabe e eu me defenda dizendo que estamos os dois meio ébrios e falando bobagens.

- Eu não sei se você gosta ou não, e também não sei se devo fazer ou não... mas o negócio é que eu pretendo te elogiar muitas vezes ainda, sabe?  - ele diz - Pelo simples motivo de estar com  uma mulher que consegue ser uma junção alucinada de coisas que me encantam, que me impressionam, que me tiram o fôlego, o sono, a atenção... Você pode morrer de vergonha, enrubescer, falar que sou muito gentil, até me chamar de exagerado, sei lá... Só desejo que você acredite, não necessariamente em mim, mas que você é, sim, tudo isso que enxergo.
E só então ele encosta a taça na minha e completa o brinde: a muitas outras segundas garrafas de vinho.

CH

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